LINHA ENTRE NÓS
2023Exposição individual no contexto do projeto balão, na galeria da Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul (Lisboa, Portugal).
Curadoria de Andreia César.
A linha geométrica é uma coisa invisível. É o traço feito por ponto que se move, ou seja, o seu produto. É criado pelo movimento – especificamente através da destruição do intenso estado de repouso autocontido no ponto. Aqui, ocorre o salto do estático para o dinâmico.1
O fazer artístico tem sido alvo do pensamento das artes visuais desde tempos remotos. As suas razões de ser, processos e concretizações, têm vindo a ser questionadas, revistas e reinventadas uma e outra vez, sem a chegada a uma conclusão satisfatória. Os artistas têm continuamente trilhado este caminho, problematizando as suas práticas, decompondo, analisando e transformado os elementos mais essenciais das obras de arte nas suas diversas categorias e modos de apresentação.
Esta voracidade da arte pela arte, anexa à da arte como um meio de inserção e acção no mundo, é, naturalmente, também o caso de Inês Nêves. Em linha entre nós, a artista apresenta uma passagem da sua investigação sobre a prática artística, na qual o elemento gráfico da linha, o gesto do desenhador, e a transposição do desenho para o espaço conhecem um notável protagonismo.
Esta voracidade da arte pela arte, anexa à da arte como um meio de inserção e acção no mundo, é, naturalmente, também o caso de Inês Nêves. Em linha entre nós, a artista apresenta uma passagem da sua investigação sobre a prática artística, na qual o elemento gráfico da linha, o gesto do desenhador, e a transposição do desenho para o espaço conhecem um notável protagonismo.
1
Kandinsky, W. (1979) Point and Line to Plane, Dover Publications, p. 53.
A sua inteligibilidade é marcada pelo entendimento da produção artística como proveniente de um enraizamento no corpo e da vivência do criador. Remetendo à relação íntima com a dança, Inês ocupa-se da experiência do corpo vivido: da sua sensibilidade, dos seus trejeitos, das suas memórias e das suas estórias, dos seus limites e das suas aptidões… O movimento surge, assim, como um fundamento e um processo criativo, fazendo-se aliar ao desenho — esse tão evidente intermediário entre o desenhador e o mundo tangível.
O desenho, em Inês Nêves, apresenta-se como um princípio e um fim: é com ele que se experimenta, que se opera, que se transforma e se reflecte… Mais que um simples código imagético, o desenho representa uma consubstanciação de uma intencionalidade e de um evento. Ele faz-se pelo traço e pelo fio, libertando-se da sua circunscrição gráfica e ganhado uma presença objectual. As linhas que o compõem expressam a índole íntima e pessoal, facilmente identificável na produção do rasto.
O desenho, em Inês Nêves, apresenta-se como um princípio e um fim: é com ele que se experimenta, que se opera, que se transforma e se reflecte… Mais que um simples código imagético, o desenho representa uma consubstanciação de uma intencionalidade e de um evento. Ele faz-se pelo traço e pelo fio, libertando-se da sua circunscrição gráfica e ganhado uma presença objectual. As linhas que o compõem expressam a índole íntima e pessoal, facilmente identificável na produção do rasto.
O rasto, esse resultado do ser em movimento, é, pois, aqui atendido segundo a dimensão corporal, dinâmica e espacial que lhe é tão característica. É neste sentido que em linha entre nós, e no conjunto de obra de Inês Nêves, resulta a relação simbiótica entre o desenho e a performance. Porque, tal como apontado por Merleau-Ponty, “visível e móvel, o meu corpo pertence ao número das coisas, é uma delas, está preso na
textura do mundo”2 , estas duas categorias fazem-se, assim, reunidas para traduzir uma ordem de experiência holística — aquela estabelecida entre o corpo, a mente e o entorno.
textura do mundo”2 , estas duas categorias fazem-se, assim, reunidas para traduzir uma ordem de experiência holística — aquela estabelecida entre o corpo, a mente e o entorno.
2
Merleau-Ponty, M. (2009) O Olho e o Espírito, Veja, p. 21.
Radicado no lugar de diálogo entre a acção e a produção, em linha entre nós assiste-se, então, à expansão do desenho para uma dimensão compatível com a do corpo pelo acentuar do movimento que no acto do desenhar está implícito. As suas linhas fazem-se libertas da esperada condição bidimensional para se desenvolverem noutras dimensões espaciais. Tendo como ponto de origem a acção da artista, as linhas estendem-se, assim, pelo espaço vectorial, desdobrando-se sobre as três dimensões observáveis. Elas expressam a duração do gesto no espaço, e introduzem a quarta dimensão. Elas fazem-se, ainda, mais que desenhadas ao tornarem-se construídas: na sua transposição do traço para o fio3 e para o objecto têxtil, ganham volumetria e textura.
3
Na sua dissertação de mestrado Traces & Threads, Exploring transversality of lines through
drawing and crochet (2021), e tomando como referência Tim Ingold, (in Lines: A Brief History,
London: Routledge, 2007), Inês Nêves indica a existência de duas classes de linhas: os traços e
os fios. Os traços, são qualquer marca duradoura deixado numa superfície sólida por um
movimento contínuo ou repetido. O fio existe no espaço tridimensional conectando dois pontos.
drawing and crochet (2021), e tomando como referência Tim Ingold, (in Lines: A Brief History,
London: Routledge, 2007), Inês Nêves indica a existência de duas classes de linhas: os traços e
os fios. Os traços, são qualquer marca duradoura deixado numa superfície sólida por um
movimento contínuo ou repetido. O fio existe no espaço tridimensional conectando dois pontos.
Por este estar e acontecer através do espaço e do tempo, bem como pela qualidade táctil que o têxtil compreende, linha entre nós propõe uma intersecção com a esfera do espectador. A obra e a exposição que se encontram sob este título apresentam, pois, uma linha metafórica “tornada pública, com a qual se pode interagir, ganhando uma identidade que não está simplesmente anexada ao material ou ao seu processo de produção, mas também a como ela se modifica.”4 . Tomando a forma de um espaço imersivo, habitado por diferentes componentes e matérias, convoca-se, assim, a agência do espectador e assumem-se as transformações que lhe são consequentes.
4
Nêves, I., (2021), Traces & Threads, Exploring transversality of lines through drawing and
crochet, Estonian Academy of Arts Design & Crafts: Textile Art & Design, p. 96.
crochet, Estonian Academy of Arts Design & Crafts: Textile Art & Design, p. 96.
Linha entre nós de Inês Nêves abre, deste modo, a porta para o lugar conjunto e partilhado da comunicação não-verbal, da arte relacional e da multissensorialidade nas artes visuais… Pelas palavras da artista “qualquer pessoa que caminhe por entre estas linhas pode assim tornar-se num agente: não pelo fazer, mas sim pela acção”. 5
5
Ibid.
Texto: Andreia César, April 2023