2021
Colagem, papel e tinta acrílica
18 cm x 27 cm
Existe algo metafísico no ato de co-habitar um espaço. Através de experiências coletivas acumuladas, o encontro recorrente com outros e connosco próprios, e a cumplicidade inerente ao compartir, um único organismo gera-se que é construido por e transcende todos: também conhecido como família. O Nº32 é onde partilhei vivências durante maior parte da minha vida. Numa atitude ritualista perante o ato de fazer que explorou o momento de estar e de fazer em coletivo, materializei nesta série de colagens as complexidades de uma casa de família. Acompanhadas de narrativas pessoais, estas composições falam sobre como a identidade e sentimento de uma casa habita o nosso subconsciente e existe nos detalhes mais triviais.
Na casa Nº32, o 31 de Dezembro de 2020 foi passado em família. Sacos de plástico cobriram a mesa de jantar entre discussões sobre quem recebe o melhor par de tesouras. E um workshop de recortes inspirado no Matisse passava num computador portátil. A minha irmã Marta, romântica por natureza, ilustrou uma cena de dois amantes num campo de flores. A minha incessantemente-crítica irmã Sara não consegiu decidir numa composição, acabando por não fazer nada. A mãe juntou retalhos de combinações de cor sem sentido para evitar o desperdício de tinta. E eu, acidentalmente (ou intuitivamente), fiz as primeiras três peças do que veio a ser uma série sobre o Nº32.
O Nº32 é, em aparência, pouco mais que uma pálida casa amarela com um jardim. Todos temos um lugar de refúgio, suponho que a nossa casa seja o mais habitualmente encontrado. Os suecos têm uma expressão “hemmablind”, que literalmente significa “cegueira caseira”. Refere-se ao sintoma que permite a falta de atenção a pequenos detalhes e particularidades nos nossos espaços pessoais (como um azulejo partido, ou um arranhão na mesa de jantar). Em casa sentimos-nos seguros. E perante a ausência de perigo, o nosso nível de alerta permanece no mínimo. Não prestar atenção ao que nos rodeia é um luxo do qual posso usufruir em casa.
A minha irmã Marta diz que tudo pesa menos no sofá. Todavía, não tenho a certeza se tal se dá devido a alguma qualidade metafísica que absorve ira e a transforma em inércia, ou por ser o cerne — o coração — do Nº32. Um lugar pelo qual todas as energias fluem, um lugar onde nos permitimos pausar com a garantia de que o resto da máquina segue incessante. Talvez ambos.
O N°32 é feito de pessoas extremamente competitivas. Independentemente do quão errado isso possa ou não ser, a nossa atividade favorita de fim-de-semana parece consistir em chacinarmos-nos no campo de batalha do jogo de tabuleiro pelo qual obcessionamos nesse momento. Gritos e lamúrias normalizaram-se em habituais conversas noturnas sobre a mesa posta. E piões coloridos acumularam-se sob a alcatifa, como memórias de jogos incompletos, atirados ao chão pela cauda de um cão ou um mau perdedor. Porém, beleza jaz na fluidez com que movemos de argumentos agressivos para ternas carícias no sofá.
Os meus pais mudaram-se para o Nº32 quando a mãe estava grávida de mim. Desde o princípio simbolizava plenitude. Espacial, inidivual e relacional. O derradeiro ponto de estabilidade após anos de mudança. Três andares robustos repletos de intemporalidade. Onde o segundo vivido transmuta através do tempo e as datas se dissolvem num único, eterno momento. Seja 1995, 2003 ou 2021, o tempo sente-se igual entre as paredes do Nº32.
Categorizar ou classificar aparenta ser uma necessidade inegável do ser humano. Os habitantes do Nº32 não fogem da regra. Em criança, grande parte dos nossos jogos favoritos implicavam definir a que fruto cada um de nós se assemelhava mais, ou a que animal. Imaginariamos que este tipo de jogo se extiguiria através do tempo, mas a idade revelou enaltecer apenas a necessidade de nos caracterizarmos através da metáfora. Já adultos, as nossas conversas mantêm-se fundamentalmente as mesmas. Um designa-se a linha de apoio ao cliente, o outro o selo de aprovação, outro é definido como “Google”. Pode parecer um jogo bastante redutor, mas na realidade há um estranho reconforto no ouvir, de uma forma tão simples, um outro fazer sentido de toda a nossa existência.
No seu melhor (ou pior), o Nº32 alcançou conter em simultâneo 6 cães, 1 gato, 1 hamster, 3 peixes e 2 piriquitos. Apesar de ter sido um paraíso infantil, sem falta de companhia ou entertenimento, terá certamente sido também um pesadelo adulto. Por cada porta aberta, uma manada de seres surtindo a máxima velocidade. Por cada lamúria chamando à atenção, um uivo, um miar ou um chilro. A razão de dois adultos se submeterem a tal situação? Também não a tenho certa. Poderá ter sido pela sua natureza generosa perante as crianças que choravam por mais animais? Com certeza. Ou talvez por algum trauma de infância? Provavelmente também.
O avô nunca permitiu animais dentro de casa. Aos
seus olhos, os cães serviam apenas guardar a casa ou as ovelhas, enquanto os gatos deveriam ser selvagens, meros caçadores de ratos. Com uma sensibilidade nata para os animais, a mãe nunca se submeteu a tais regras. Ao escapar pela madrugada para ir dormir com as vacas, ou passar o dia dentro do galinheiro, terminou encontrando animais de estimação onde podia. Talvez o nosso zoológico privado fosse também o seu paraíso secreto.